Informativo 1138 do Supremo Tribunal Federal
É inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de maneira que se proíbe eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais.
Na audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher, não é possível a invocação, pelas partes ou procuradores, de elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento.
Essa nulidade não será reconhecida se foi a própria quem invocou o modo de vida da vítima ou questionou a sua vivência sexual pregressa com o objetivo de gerar nulidade. Isso porque o acusado não pode se beneficiar da própria torpeza.
Na fixação da pena em crimes sexuais, o magistrado não pode valorar a vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida.
O magistrado tem o dever de impedir a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento. Se não atuar para impedir essa prática, poderá sofrer responsabilização civil, administrativa e penal.
STF. Plenário. ADPF 1.107/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 23/05/2024 (Info 1138).
Em apertada síntese, entenda o caso!
A Procuradoria-Geral da República ajuizou arguição de descumprimento de preceito fundamental pleiteando que a Suprema Corte proíba qualquer questionamentos sobre a vida sexual pregressa e modo de vida da vítima nos crimes sexuais, seja em sede policiail ou judicial, instrução e julgamento.
A título de exemplo podemos destacar os questionamentos à mulher, comumente utilizados, em seus depoimentos em sede policial:
a) o tipo de roupa que a vítima utilizava;
b) se estava embriagada;
c) se era virgem;
d) com quem tinha o hábito de relacionar-se.
Para a PGR, deve-ser considerar apenas, exclusivamente, o consentimento da vítima diante da suposta prática de crime contra a dignidade sexual, deixando de lado, de fora, qualquer indagação sobre sua vida privada e intimidade, sob pena de consituir-se em conduta enviesada e discriminatória por parte policiais, delegados, promotores, advogados e juízes, em relação aos quais devem ser tais comportamentos prontametne combatidos.
Segundo o Egrégio Tribunal, esses tipos de questionamento, por exemplo, em sede policiail, desqualificam a vítima, consitutuindo em uma descriminação contra mulher, como forma de justificar a prática do crime, fazendo crer a todos que a vítima teria parcela de culpa na violência sexual contra si praticada.
A Procuradoria Geral da República arguiu ainda que “
“… parte da concepção odiosa de que seria possível distinguir mulheres que merecem ou não a proteção penal pela violência sofrida. Em ambiente que haveria de ser de acolhimento, a mulher vítima de violência passa a ser, ela própria, julgada em sua moral e seu modo de vida, na tentativa da defesa de justificar a conduta do agressor, e sem a reprimenda proporcional pelo Estado”. |
Veja os argumentos invocados pela Excelsa Corte no julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, in verbis:
Apesar da evolução legal e constitucional, o Estado e a sociedade brasileira continuam aceitando a discriminação e a violência de gênero contra a mulher na apuração e judicialização dos atentados contra ela, principalmente nos
crimes contra a dignidade sexual.
De fato, é comum que, nas audiências, a vítima seja inquirida quanto à sua vida pregressa e aos seus hábitos sexuais para que tais elementos sejam utilizados como argumentos para justificar a conduta do agressor.
Essas práticas não possuem base legal nem constitucional e foram construídas para relativizar a violência contra a mulher e gerar tolerância em relação a estupros praticados contra aquelas cujo comportamento fugisse do que era considerado aceitável pelo agressor.
Nesses casos, culpa-se a vítima pela conduta delituosa do agente.
Nesse contexto, todos os Poderes da República devem atuar conjuntamente para coibir a violência de gênero, especialmente a vitimização secundária da pessoa agredida em sua dignidade sexual.
Questionar o histórico da vida sexual ou o modo de vida da vítima durante a apuração e julgamento dos crimes de violência contra a mulher viola a Constituição Federal.
Se isso ocorrer, o processo pode ser anulado, nos termos dos arts. 563 a 573 do CPP.
O STF definiu, ainda, que o juiz responsável pelo julgamento desses crimes tem o dever de impedir tal prática durante a investigação,
sob pena de responsabilização administrativa e penal.
De igual modo, o magistrado não pode levar em consideração a vida sexual da vítima no momento de fixar a pena do réu.
Portanto, o Plenário do Supremo Tribunal, por unanimidade, julgou procedente para:
Conferir interpretação conforme a Constituição à expressão elementos alheios aos fatos objeto de apuração posta no art. 400-A do CPP, para excluir a possibilidade de invocação, pelas partes ou procuradores, de elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento, nos termos dos arts. 563 a 573 do CPP/1941;
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Durante a apuração e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual é proibida a realização de menções, questionamentos ou de argumentação sobre a vida sexual pregressa da vítima e seu modo de vida. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/aa7d66ed4b1c618962d406535c4d282a>. Acesso em: 19/07/2024
(ii) vedar o reconhecimento da nulidade referida no item anterior na hipótese de a defesa invocar o modo de vida da vítima ou a questionar quanto a vivência sexual pregressa com essa finalidade, considerando a impossibilidade de o acusado se beneficiar da própria torpeza;
(iii) conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 59 do Código Penal, para assentar ser vedado ao magistrado, na fixação da pena em crimes sexuais, valorar a vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida.
(iv) assentar ser dever do magistrado julgador atuar no sentido de impedir essa prática inconstitucional, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal.