Olá, pessoal!
Mais uma questão de PROVA DISCURSIVA.
Aí vai a questão:
“Quais as posições doutrinárias e jurisprudenciais com relação à falsificação de documento utilizado, efetivamente, para a prática do crime de estelionato.”
Comecemos com a seguinte situação hipotética:
“Tício de posse de um documento de identidade troca a foto existente pela sua, e, em seguida, compra um computador em uma loja departamentos, utilizando-se do documento de identidade falsificado.”
INDAGA-SE: Qual a capitulação penal da conduta de TÍCIO?
Segundo o meu entendimento, a conduta de TÍCIO amolda-se aos tipos penais dos artigos:
Art. 297, do Código Penal – FALSIDADE MATERIAL;
Art. 171, caput, do Código Penal – ESTELIONATO;
Tudo na forma do Art. 69, do Código Penal – CONCURSO MATERIAL.
Inicialmente, cabe ressaltar que o infrator não responderia também pelo crime do Art. 304, do Código Penal – USO DE DOCUMENTO FALSO, se foi ele quem fez a falsificação e, em seguida, a utilizou para a prática do crime de estelionato. O uso de documento falsificado é mero exaurimento do crime do art. 297, do Código Penal.
FERNANDO CAPEZ assim nos informa, in verbis:
Falso documental e uso (CP, art. 304): o art. 304 prevê o delito de uso de documento falso. Na hipótese em que o próprio falsário faz uso do documento falsificado, o uso constitui fato posterior não punível (uma das subespécies da chamada progressão criminosa).
Ocorre este quando, após realizada a conduta, o agente pratica novo ataque contra o mesmo bem jurídico (no caso, a fé pública), visando apenas tirar proveito da prática anterior. O fato posterior é tomado como mero exaurimento. Afasta-se, portanto, a possibilidade de haver no caso concurso de crimes.
Aplicando-se a REGRA DO CONCURSO MATERIAL, prevista no Art. 69, do Código Penal, esta seria a melhor posição doutrinária, com fundamento no entendimento de que os MOMENTOS FÁTICOS e os BENS JURÍDICOS TUTELADOS são DISTINTOS.
Porém, esta não é a melhor posição doutrinária segundos alguns autores.
Em seu livro, FERNANDO CAPEZ arrola 04(quatro) posições doutrinárias e jurisprudenciais, senão vejamos, in verbis:
a) Superior Tribunal de Justiça: o estelionato absorve a falsidade, quando esta foi o meio fraudulento empregado para a prática do crime-fim que era o estelionato. Nesse sentido, a Súmula 17 desse tribunal, cujo teor é o seguinte: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”.
Veja que a súmula exige que o falso se exaura no estelionato, o que significa dizer que a fraude se esgote naquele crime. Por exemplo: pagar mercadorias em loja com uma folha de cheque falsificada.
Uma vez utilizada a cártula, não há como o documento falsificado ser novamente empregado na prática de outros crimes. A fraude, portanto, se esgotou no crime de estelionato. Se, pelo contrário, a falsidade for apta à prática de outros crimes, afasta-se a incidência da súmula mencionada, havendo o concurso de crimes; por exemplo:carteira de identidade falsificada (CONCURSO MATERIAL – Art. 69, do Código Penal, grifo nosso).
Finalmente, reafirmando a orientação no sentido da absorção do crime de falso pelo estelionato, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 25: “A utilização de papel-moeda grosseiramente falsificado configura, em tese, o crime de estelionato, de competência da Justiça Estadual”;
b) Supremo Tribunal Federal: há concurso formal de crimes. Conforme havíamos falado inicialmente, o crime de falso atinge a fé pública, ao passo que o estelionato atinge o patrimônio. Tais crimes, portanto, atingem bens jurídicos diversos. Mencione-se, ainda, que o primeiro (falsidade de documento público) é mais severamente apenado que o segundo, argumentos estes que afastam a teoria da absorção de crimes;
c) há concurso material;
d) o crime de falso (aqui a falsidade deve ser de documento público, cuja pena é superior à do crime de estelionato) prevalece sobre o estelionato.
CRÍTICAS ÀS POSIÇÕES.
Entendo que a posição jurisprudencial mencionada na alínea “a” está equivocada.
De fato, a manter esse entendimento faria com o crime de maior gravidade (FALSIDADE MATERIAL – Art. 297, do Código Penal) ficasse absorvido pelo crime de menor gravidade (ESTELIONATO – Art. 171, caput, do Código Penal).
Vejam as penas máximas de ambos os delitos.
Estelionato
Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.
Falsificação de documento público
Art. 297 – Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro:
Pena – reclusão, de dois a seis anos, e multa.
Ademais, não se olvide de que os BENS JURÍDICOS TUTELADOS são distintos, além de a consumação ocorrer em MOMENTOS DIVERSOS.
A fé pública, bem jurídico tutelado do crime do Art. 297, do Código Penal, ficaria desprotegida, o que se revela um despautério se mantida a posição de que se deve aplicar o PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO, prevalecendo o CRIME DE ESTELIONATO sobre o CRIME DE FALSIDADE MATERIAL.
Segundo FERNANDO CAPEZ, in verbis, somente se aplica o referido princípio quando um fato mais amplo e grave absorve outro de menor gravidade, constituindo este meio de execução para aquele.
É verdade que a falsidade material é meio de execução para o crime de estelionato, mas lhe falta o requisito de que o fato mais grave absorve o de menor gravidade, como no exemplo abaixo.
A posição doutrinária e jurisprudencial acima não é consentâneo com o referido princípio.
Consunção — “Lex consumens derogat consumptae”
Conceito de consunção: é o princípio segundo o qual um fato mais amplo e mais grave consome, isto é, absorve, outros fatos menos amplos e graves, que funcionam como fase normal de preparação ou execução ou como mero exaurimento. Costuma-se
dizer: “o peixão (fato mais abrangente) engole os peixinhos (fatos que integram aquele como sua parte)”EXEMPLO trazido pelo eminente doutrinador FERNANDO CAPEZ:
Por exemplo: um sujeito dirige perigosamente (direção perigosa) até provocar, dentro do mesmo contexto fático, um acidente fatal (homicídio culposo no trânsito). Neste caso, o peixe “direção perigosa” é absorvido pelo peixão “homicídio culposo”, restando apenas este último crime e, por conseguinte, a norma que o define.
Prosseguindo, temos a SEGUNDA POSIÇÃO, como se infere da letra “b”, defendida pelo Supremo Tribunal Federal, que sustenta o entendimento de que se trata de CONCURSO FORMAL de crimes.
Segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, o uso de documento falso é parte integrante do crime de estelionato, como ato executório, constituindo-se ele, portanto, de um ardil, engodo com a finalidade de causar prejuízo econômico à terceiros.
Há entendimento jurisprudencial no sentido de que se o uso de documento falso é apto e possibilita muitos outros estelionatos, de modo que a potencialidade lesiva não se esgota no estelionato tentado, a hipótese será de CONCURSO FORMAL e não de aplicação do PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO.
Vejam que há apenas uma conduta (fazer uso de documento de falso), com finalidade de causar dano econômico à terceiro. Ao fazer uso de documento público, o agente violou o bem jurídico tutelado que é a fé pública, ao mesmo tempo que provocou dano patrimonial à terceiro. Um única conduta e dois resultados, motivo pelo qual aplica-se a regra do CONCURSO FORMAL de crimes.
Concurso formal
Art. 70 – Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade.
As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.
Parágrafo único – Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.
Por último, há o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que se deve aplicar a regra segunda a qual o CRIME DE FALSIDADE MATERIAL prevalece sobre o CRIME DE ESTELIONATO, absorvendo-o.
Para esta corrente doutrinária, o crime de ESTELIONATO constitui-se de mero EXAURIMENTO, motivo pelo qual o infrator responderá apenas pelo crime de FALSIDADE MATERIAL.
CLÉBER MASSON assim nos ensina, in verbis:
1.ª posição: A falsidade documental absorve o estelionato
O falso é crime formal, pois se consuma com a falsificação do documento, independentemente de qualquer resultado posterior. Contudo, se sobrevier o resultado naturalístico, do qual é exemplo a obtenção da indevida vantagem econômica, não haverá falar em outro delito, e sim em exaurimento da falsidade documental.
Para Nélson Hungria: Quando a um crime formal se segue o dano efetivo, não surge novo crime: o que acontece é que ele se exaure, mas continuando a ser único e o mesmo (à parte a sua maior punibilidade, quando a lei expressamente o declare.
A obtenção de lucro ilícito mediante falsum não é mais que um estelionato qualificado pelo meio (Impalomeni). É um estelionato que, envolvendo uma ofensa à fé pública, adquire o nomen iuris de “falsidade”.60
Esta posição ganha ainda mais força ao recordarmos que a falsificação de documento público tem pena mais elevada do que o estelionato. O crime mais grave (falsificação de documento público: reclusão, de dois a seis anos) absorveria o crime menos grave (estelionato: reclusão, de um a cinco anos).