
Informativo n.º 843, do Superior Tribunal de JustiçaÉ cabível acordo de não persecução penal em ação penal privada, mesmo após o recebimento da denúncia, tendo o Ministério Público legitimidade supletiva para propor a medida quando houver inércia ou recusa infundada do querelante.
“A questão em discussão consiste em saber se é cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal em ação penal privada após o recebimento da queixa-crime, e se o Ministério Público possui legitimidade para propor o ANPP em substituição ao querelante. O acordo de não persecução penal foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pelo art. 28-A do CPP, por meio da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), com o inegável propósito de possibilitar soluções consensuais para crimes de menor gravidade, reduzindo o número de processos penais ao mesmo tempo em que propicia maior celeridade à justiça criminal. O ANPP veio como forma de mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública diante da existência de lastro suficiente de autoria e materialidade para oferecimento da denúncia, assim como já acontece na transação penal, instituto cabível para as infrações de menor potencial ofensivo (art. 76 da Lei n. 9.099/1995). Pode-se asseverar, também, a mitigação ao princípio da indisponibilidade, segundo o qual, em linhas gerais, não é dado ao Ministério Público desistir no curso da ação penal, sob a perspectiva de aplicação do ANPP aos processos em curso ao tempo do início da vigência do ANPP no ordenamento jurídico (Lei n. 13.964/2019, em 23/1/2020), consoante decidido no julgamento do Habeas Corpus n. 185.913/DF pelo Supremo Tribunal Federal. Todavia, o CPP não disciplinou expressamente a possibilidade de celebração do acordo de não persecução penal no âmbito da ação penal privada, o que gerou controvérsia doutrinária e jurisprudencial. A despeito da lacuna normativa, a extensão por analogia do ANPP à ação penal privada deve ser admitida, pelos seguintes fundamentos: a) O interesse público subjacente à ação penal privada – Ainda que o direito de ação seja atribuído ao ofendido, a persecução penal continua sendo uma manifestação do ius puniendi estatal, sendo inalienável ao particular. O querelante não age em nome de um direito material próprio, mas sim no exercício de um direito de substituição processual. b) O princípio da isonomia entre réus de ações penais públicas e privadas – Negar o ANPP a crimes de ação penal privada, nos casos em que todos os requisitos legais estão preenchidos, significaria conceder tratamento mais gravoso a acusados que se encontram em situações fáticas idênticas, o que violaria o princípio da igualdade substancial. c) O caráter restaurativo e desjudicializante da política criminal contemporânea – O ANPP visa a garantir uma justiça penal mais eficiente e menos punitivista, fomentando a reparação do dano e prevenindo o encarceramento desnecessário. Se há espaço para essa abordagem na ação penal pública, com maior razão deve ser admitida na ação penal privada, que, por sua própria natureza, confere ao ofendido um juízo de conveniência sobre a persecução penal. Dessa forma, a ausência de previsão expressa não pode ser interpretada como proibição, devendo-se reconhecer a aplicação do acordo de não persecução penal na ação penal privada por analogia in bonam partem. Quanto a legitimidade para a propositura do acordo, ainda que se reconheça a titularidade da ação penal privada pelo ofendido, a doutrina e a jurisprudência têm apontado que esse direito não é absoluto e deve ser exercido dentro dos limites da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, o querelante não pode recusar arbitrariamente um acordo de não persecução penal, pois a persecução penal não pode ser utilizada como um instrumento de vingança privada. Nesse sentido, o Ministério Público, como custos legis, pode e deve atuar subsidiariamente nos seguintes casos: a) Recusa injustificada do querelante – Quando o querelante, sem fundamentação razoável, se recusar a ofertar o ANPP, ainda que estejam preenchidos os requisitos legais, o Ministério Público deve intervir para impedir que a persecução penal se torne um instrumento de abuso. b) Silêncio ou inércia do querelante – Na hipótese de omissão do querelante diante da proposta de ANPP, o Ministério Público pode supletivamente ofertá-la, garantindo que o processo penal atenda a uma finalidade justa e racional. c) Propostas abusivas e desproporcionais – Caso o querelante imponha exigências irrazoáveis ou desproporcionais para a celebração do acordo, inviabilizando sua efetivação, caberá ao Ministério Público intervir para garantir que os parâmetros legais sejam respeitados. A função do Ministério Público, nesse contexto, não se confunde com a titularidade da ação penal. Sua atuação ocorre de forma supletiva e excepcional, apenas para garantir que o instituto do ANPP seja aplicado de maneira justa e eficaz. Note-se que parte da resistência à tese da legitimidade supletiva do Ministério Público decorre do entendimento consolidado deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, em ações penais privadas, a transação penal só pode ser proposta pelo querelante. Contudo, o acordo de não persecução penal possui natureza jurídica distinta da transação penal, o que justifica uma abordagem diferenciada. Assim, a jurisprudência do STJ sobre a transação penal não pode ser aplicado automaticamente ao ANPP, sob pena de se comprometer a coerência do sistema penal. Quanto ao momento para oferecer o ANPP, por interpretação sistemática ao contido no art. 28-A do CPP e seus parágrafos, especialmente o § 8º e o § 10, tem-se que, em regra, é anterior ao oferecimento da denúncia. Na prática, porém, a certeza do investigado quanto à falta de propositura do ANPP ocorre quando citado para responder à acusação. Assim, precedentes desta Corte admitem que na fase da resposta à acusação, primeiro momento processual para manifestação da defesa do acusado, o agora denunciado possa manifestar-se pelo cabimento do acordo. Sucede que a definição dos momentos processuais para o acordo de não persecução penal na ação penal privada perpassa a interpretação sistemática do artigo 28-A do Código de Processo Penal com os artigos 105 e 106 do Código Penal e o artigo 51 do CPP, que consagram o princípio da disponibilidade. A ação penal privada rege-se pelo princípio da oportunidade, conferindo ao querelante ampla margem de disponibilidade sobre a persecução penal, podendo, inclusive, renunciar ao direito de queixa, perdoar o querelado ou realizar composição civil em qualquer fase do processo. Se o querelante pode exercer atos ainda mais abrangentes, como desistir integralmente da persecução penal, segue-se que também pode firmar um acordo de não persecução penal, ato de menor impacto dentro da mesma esfera de atuação, até o trânsito em julgado, pois este representa uma alternativa intermediária que não extingue de plano o direito de punir, mas apenas o condiciona ao cumprimento de determinadas obrigações. Dessa forma, não há justificativa lógica ou principiológica para restringir a possibilidade do querelante formalizar um ANPP em momento posterior ao recebimento da queixa. Ressalte-se que essa interpretação vale para as iniciativas do querelante, pois a atuação do Ministério Público na ação penal privada é excepcional, limitando-se à fiscalização da ordem jurídica e intervenção supletiva quando houver inércia do autor da queixa-crime. Nessa conformidade, a legitimidade ministerial para propor o ANPP decorre do artigo 45 do CPP, que lhe confere função de custos legis, mas essa atuação deve ocorrer na primeira oportunidade processual, sob pena de preclusão. Esse entendimento assegura a coerência do sistema acusatório e a primazia do querelante na condução da ação penal privada, sem esvaziar o papel fiscalizador do Ministério Público.” Informativo n.º 843, do Superior Tribunal de Justiça |
Art. 28-A, do Código de Processo Penal Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. § 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto. § 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses: I – se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei; II – se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; III – ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e IV – nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. § 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor. § 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade. § 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor. § 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal. § 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo. § 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia. § 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento. § 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia. § 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo. § 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo. § 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade. § 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código. |