
A continuidade delitiva não impede a celebração de acordo de não persecução penal. Informativo 829, do Superior Tribunal de Justiça |
Imagine a seguinte situação hipotética: João trabalhava como caixa na Caixa Econômica Federal. Durante o período de janeiro a dezembro de 2022, aproveitando-se de sua função e conhecimento do sistema bancário, ele realizou 16 operações fraudulentas, desviando pequenas quantias de dinheiro de contas inativas para sua conta pessoal. As operações seguiam sempre o mesmo padrão: • Identificava contas sem movimentação há mais de 6 meses; • Realizava transferências de valores entre R$ 500,00 a R$ 1.000,00; • Apagava os registros das operações do sistema. Em março de 2023, uma auditoria interna descobriu as fraudes. João foi denunciado pelo Ministério Público Federal por peculato (art. 312, § 1º, do Código Penal), em continuidade delitiva (art. 71 do CP), já que os crimes foram cometidos nas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução: Peculato Art. 312, do Código Penal – Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: Pena – reclusão, de dois a doze anos, e multa. § 1º – Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário. (…) Crime continuado Art. 7, do Código Penal – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. Parágrafo único – Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código. FOTE: BUSCADO DIZER O DIREITO |
O Tribunal de origem entendeu que a continuidade delitiva impede a aplicação do acordo de não persecução penal, considerando-a como indício de dedicação à atividade criminosa.
iNFORMATIVO N.º 829 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Contudo, o rigor inerente ao princípio da legalidade foi devidamente contemplado na redação do art. 28-A, §2º, II, do CPP, que, ao estabelecer as condições impeditivas para o acordo de não persecução penal, explicitou de maneira taxativa as hipóteses excludentes, dentre as quais se encontram as condutas praticadas de forma criminosa habitual, reiterada ou profissional.
A legislação em momento algum incluiu a continuidade delitiva como causa impeditiva para a celebração do ANPP, como se depreende da uma leitura clara e objetiva do texto legal.
A figura do crime continuado é distinta do crime habitual.
O afastamento da continuidade delitiva em casos de habitualidade criminosa se justifica pela própria teleologia do instituto, que visa a atenuar o rigor punitivo em face de uma série de infrações semelhantes e, essencialmente, conectadas por um desígnio comum.
Quando tal conexão não se verifica, e a prática reiterada de delitos evidencia uma propensão criminosa contínua e autônoma, impõe-se o tratamento mais severo e proporcional ao desvalor da conduta e à periculosidade do agente, como medida necessária à adequada reprovação e prevenção do delito.
A inclusão da continuidade delitiva como óbice à celebração do acordo de não persecução penal constitui uma interpretação que extrapola os limites impostos pela norma, inserindo um requisito que o legislador, de forma deliberada, optou por não contemplar.
Não se pode olvidar que a norma processual penal tem seus parâmetros definidos de maneira a equilibrar o poder punitivo do Estado com as garantias constitucionais do acusado, sendo inadmissível a criação de obstáculos não previstos expressamente em lei, sob pena de violação ao princípio da estrita legalidade.
Nesse sentido, a ausência de menção à continuidade delitiva no rol das hipóteses impeditivas para o ANPP reforça o entendimento de que o legislador, ao estabelecer os requisitos para a aplicação do instituto, procurou restringir tais impedimentos àquelas condutas que, por sua habitualidade, reiteração ou caráter profissional, revelam maior gravidade e periculosidade.
A interpretação extensiva que inclui a continuidade delitiva como barreira ao acordo configura criação judicial que não encontra respaldo no ordenamento jurídico vigente.